27/04/2009

Discutir a relação – segundo capítulo

Por Roberto Duarte

Discutir a relação entre o Estado e a(s) Cultura(s) é discutir a relação entre o que público e o que é privado. Fomos catequizados dentro dos valores da modernidade, atribuindo valor ao que é privado e desprezando o que seja público. A idéia corrente é que o que é público é de ninguém e pode ser apropriado (privatizado) por quem chegar primeiro. Eu entendo que deva ser o contrário. Se é público, deve ser preservado e preservado assim, sem ser apropriado por ninguém particularmente, cuidado e protegido por todos, e ser usado em função do proveito de todos. E assim deve ser com o dinheiro público.

Acabou de rir?

Que ingênuo, não é? Bobo. Pensamento idiota, desprovido de senso prático...

Aqui é a terra da “farinha pouca, meu pirão primeiro”, como um débil mental pode querer que qualquer um abra mão de abocanhar o que pode ser seu, em benefício de uma coisa vaga e etérea como “ser público”?

Pois é. A cultura é coisa pública. Isso já dá uma enorme discussão. A cultura é o conjunto de todas as contribuições (coisas, obras, materiais e imateriais) que compõem o imaginário coletivo, os “sistemas simbólicos” que usamos para viver o dia-a-dia. O dinheiro público da cultura só pode ser usado em benefício público, não pode ser apropriado para enriquecimento particular, deixando de ser, magicamente, dinheiro público. Serve apenas para viabilizar a produção das obras e bens, direta e indiretamente, culturais.

No final, quem paga pela cultura é o público, sempre, nos dois sentidos da palavra público, direta e/ou indiretamente. Diretamente, ele paga na bilheteria, no caixa, na aquisição do acesso a obra. Indiretamente, através do Estado, das políticas públicas de apoio, estímulo, incentivo e financiamento da cultura. O Estado entra aqui como intermediário e intérprete da necessidade pública de cultura e dirige os (pequenos) excedentes econômicos disponíveis para estimular os circuitos culturais. Aqui devemos distinguir circuitos culturais da produção de obras. A obra é sempre um ponto. O estado deve enxergar o sistema e investir ou incentivar os pontos estrategicamente fortes para composição ou recomposição do sistema. Os indivíduos constituem o sistema, mas é a sinergia do sistema que sustenta os indivíduos.

É uma falácia de demagogos o argumento de que a decisão de onde aplicar incentivo com dinheiro público deve estar na mão da iniciativa privada, e que isso signifique liberdade. Impediria o dirigismo do Estado ou Governo. A coisa menos livre do mundo é a empresa privada. Ela é prisioneira dos acionistas, que são seres indiferentes à causa social e só enxergam o lucro nos balanços do fim do exercício fiscal. Deu lucro, a glória. Deu prejuízo, o inferno. Deu lucro? Transferem-se as rendas para os acionistas. Deu prejuízo? Demitem-se os funcionários para equilibrar as contas, mesmo que isso gere desemprego em massa, crise, marginalize a classe trabalhadora ou ameace a segurança pública. Benefício social e causa pública são secundários para a empresa privada, embora ela dependa da sociedade, obviamente..

No Fazcultura ou na Lei Rouanet, quem decide para onde deve ser dirigido o dinheiro público para incentivo à cultura é um representante de uma empresa privada, que pensa do modo descrito no parágrafo acima. E defende que isso seja liberdade de decisão. A liberdade de raposa no galinheiro. Isso cria um viés ideológico para a aplicação destes dinheiros públicos e, portanto, este modo de incentivar a cultura não pode constituir a totalidade das políticas públicas de apoio, incentivo etc.

Então, creio que enfrentamos duas grandes questões. Primeiro, como estimular a funcionamento dos sistemas de circulação de bens culturais, pensando em sustentabilidade e independência da intervenção direta do Estado? Segundo, como atrair o investimento privado para a cultura? Em tempo: investimento privado com recursos privados.

Continua.

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